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Efeito Trump: casa de jovens LGBTs em SP vai fechar por falta de verba

A Casa 1, de acolhimento a LGBTs, deve fechar em poucos meses por falta de financiamento. Situação se agravou a partir de medida de Trump

Por Metropóles 06/11/2025 12h12
Efeito Trump: casa de jovens LGBTs em SP vai fechar por falta de verba
Instituição Casa 1 - Foto: Reproducão/Jean Carniel

A extinção dos programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) nos Estados Unidos, pelo governo Donald Trump, impactou uma casa de acolhimento a jovens LGBTs em situação de vulnerabilidade em São Paulo. Sem o financiamento de duas instituições norte-americanas à Casa 1, no bairro da Bela Vista, no centro da capital paulista, o espaço enfrenta falta de verba e deve fechar em breve.

O local foi fundado pelo relações públicas e jornalista Iran Giusti, de 36 anos, em 2017, e acolhe diversos jovens LGBTs vítimas de homofobia, violência e discriminação de diferentes lugares do país e do mundo.

No espaço, que realiza cerca de dois mil atendimentos mensais, os acolhidos contam com diversas atividades de saúde e de desenvolvimento profissional, como atendimento clínico, psicológico e formação em culinária ou serviços de beleza. As ações, no entanto, devem ser encerradas nos próximos meses.

O que é a Casa 1

A ideia de construir a Casa 1 surgiu a partir de uma publicação Facebook, em que Giusti ofereceu uma vaga no sofá de casa para acolher pessoas LGBTs que precisavam de um lugar para ficar. A postagem rapidamente viralizou e, em 24 horas, ele recebeu 50 pedidos.

Ao ver a demanda por acolhimento, percebeu a necessidade de encontrar um espaço maior para receber essas pessoas. Nove anos depois, o complexo que envolve a casa cresceu em tamanho e em serviços oferecidos.

O espaço conta com um centro de acolhimento, onde jovens LGBTs em situação de vulnerabilidade, entre 18 e 25 anos, podem morar por até quatro meses. No local também funciona uma biblioteca comunitária e um brechó, recém-inaugurado.

Além do centro de acolhimento, há o centro cultural da Casa 1, onde funciona um salão de atividades diversas, um ateliê de costura, uma sala de aula, um salão de beleza escola (para formação profissional), uma cozinha comunitária e salas de atendimento para serviço social e atendimento clínico e psicológico ou psiquiátrico.

Atualmente, há 12 jovens acolhidos na casa. E, nos últimos anos, o espaço acolheu imigrantes LGBTs, em uma parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Moraram ali pessoas vindas do Irã, Iêmen, Jamaica, Rússia e Marrocos, por exemplo.

Antes dos desligamentos recentes, iniciados neste mês, a Casa 1 contava com 24 colaboradores. Ao menos três já foram desligados, em decorrência dos problemas financeiros que o espaço enfrenta, informou Giusti ao Metrópoles.

Custos e financiamento

Giusti explicou que a manutenção da Casa 1, com todos os espaços, atividades e salários, custa R$ 250 mil por mês – ou R$ 3 milhões por ano. Ele destacou ainda que todos os imóveis usados são alugados, e que o custo, incluindo pequenos reparos e contas fixas, fica em R$ 45 mil mensais. O restante é usado para pagar os salários dos funcionários, desenvolver as atividades realizadas e adquirir os mantimentos necessários para os acolhidos.

Desde que surgiu, o financiamento do espaço é feito majoritariamente pela sociedade civil, por meio de doações de pessoas físicas, o que representa de 60% a 70% de todo o dinheiro arrecadado. O complemento é levantado por meio de empresas, marcas e editais públicos.

O financiamento público, aliás, sempre foi um desafio para a Casa 1. Com nove anos de funcionamento, tendo acolhido centenas de jovens LGBTs em situação de vulnerabilidade, a instituição nunca recebeu apoio municipal e estadual. O primeiro apoio federal veio recentemente, e cobre apenas 10% do orçamento anual do espaço (R$ 300 mil).

“A gente foi contemplado com o primeiro edital de casa de acolhida do Ministério dos Direitos Humanos, da Secretaria LGBT, mas é isso, né, era um edital de R$ 300 mil para manutenção do centro de acolhida, sendo que o meu orçamento é de R$ 3 milhões”, contrapôs o fundador.

Segundo Giusti, não é por falta de tentar. A Casa 1 já se inscreveu em inúmeros projetos de financiamento, mas sempre recebeu como resposta que o espaço “não cabe na temática do hospital”. “Quando a gente tem um pouco mais de intimidade com as empresas, eles falam: ‘olha, a diretoria mandou cortar tudo que é LGBT’”, disse o jornalista.

“Para escrever uma emenda parlamentar, para escrever um edital, você tem que dar uma volta, porque se você fala diversidade, se você fala trans, se você fala de gênero, se você falar qualquer coisa, o seu projeto não passa. Ele não tem apelo pro mercado”, complementou.

Em 2019, o financiamento coletivo, que sempre manteve a Casa 1 de pé, caiu drasticamente. Uma mobilização foi feita, e o dinheiro arrecadado por meio de doações físicas cresceu exponencialmente, sendo possível até mesmo criar uma reserva em caixa, o que segurou as pontas durante a pandemia de Covid-19, período em que muitos outros projetos LGBTs foram forçados a fechar.

As doações físicas, contudo, diminuíram com o tempo, o Giusti considera uma “ressaca” do período pandêmico, em que haviam inúmeras campanhas de arrecadação por Pix.

“A própria implementação do Pix foi ótima, porque aumentou as nossas arrecadações globais. Mas, ao mesmo tempo, ela tirou financiamento coletivo recorrente, que era uma forma muito importante, onde a gente recebia um valor fixo e conseguia se organizar dali pra frente e ter uma certa estabilidade”, explicou.

A perda recente de dois financiamentos internacionais a partir da medida imposta por Trump de não financiar projetos de diversidade, também afetou as contas. A iniciativa do governo dos Estados Unidos impactou até mesmo os programas de combate ao HIV/AIDS geridos pela ONU, apontou Giusti. “Afetou da Casa 1 até a ONU”, disse.

O relacionamento com marcas também é importante para a manutenção da Casa 1, mas as políticas internacionais têm impactado nesses negócios. Segundo o jornalista, empresas de tecnologia e big techs estão voltando atrás nas políticas de diversidade, eliminando essas áreas e trocando comunicação visual para não ter relacionamento com essas pautas. “Em 2023, a gente teve cerca de 300 ações com marcas e empresas. Em 2024, esse número caiu para 40. Em 2025, a gente teve uma grande ação na empresa só”, apontou.

Fechamento iminente

Segundo o fundador da Casa 1, com o valor que tem em caixa, o espaço consegue funcionar somente até janeiro. Isso porque, além das contas e mantimentos, a instituição deve pagar ao menos R$ 280 mil em rescisões de contratos trabalhistas.

Os meses entre outubro e março representam o pior período em que esse cenário poderia ocorrer. Isso porque, nesta época do ano, quase não há desenvolvimento de ações com empresas e organizações, e os editais estão suspensos. Segundo Giusti, a organização precisaria arrecadar ao menos R$ 1,5 milhão para garantir mais alguns meses de funcionamento.

Questionado sobre como se sente com relação ao fechamento da Casa 1, Giusti lembra das organizações religiosas que pregam o assistencialismo e a benevolência. “Eu opero com uma chave muito diferente, eu opero na força do ódio mesmo. Eu faço porque sinto raiva. Eu opero com raiva todos os dias e eu direciono essa raiva pra tentar construir algo positivo”, declarou.

Ele contou à reportagem que, quando foi feito o primeiro desligamento de um funcionário, na última sexta-feira (1/11), a equipe passou parte do dia chorando em despedida. No início da noite, no entanto, precisaram se movimentar para realizar um bingo, que seria uma importante forma de captação de fundos para a casa. “Não dá tempo de você ficar mal. Não dá tempo de você dormir. Não dá tempo de você descansar”, desabafou.

“A Casa 1 mudou a minha vida”

O fotógrafo Jonys, de 28 anos, precisou de acolhimento psicológico após passar por uma situação pessoal bastante desafiadora no ano passado. Ele conta que, no dia seguinte ao episódio, procurou a Casa 1 e foi rapidamente atendido, de forma gratuita.

Mesmo indo a apenas duas sessões de atendimento psicológico, e ao show de inauguração do espaço, ali conheceu pessoas com quem tem contato até hoje. “A Casa 1 mudou a minha vida”, disse ao Metrópoles.

Já o massoterapeuta Júlio, de 38 anos, veio de Santos à São Paulo procurando mais oportunidades de trabalho, o que incluía o plano de aprender novos idiomas. Foi quando descobriu que a Casa 1 oferecia, à época, cursos de inglês e espanhol gratuitos.

“Isso mudou a minha vida, porque hoje eu tenho um nível intermediário de espanhol graças à Casa 1”, afirmou o massoterapeuta, que utilizou o novo conhecimento para trabalhar em hospedagens pela capital paulista.

“Eu vejo que o LGBTQIA+, às vezes, não tem tantas oportunidades por conta financeira, ou por conta de apoio familiar, ou de amigos, enfim, e a Casa 1 acolhe a todos dessa maneira, gratuita, voluntária, sem esperar nada em troca. É 100% doação”, reforçou.