'Esse lugar vai virar fenômeno': ataques de tubarão atraem turistas em PE
A quantidade de placas de alerta, as estatísticas de incidentes com tubarão ou mesmo os recentes casos nem de longe criam o medo necessário para afugentar a população
Há cinco dias passeando por Pernambuco, a operadora Suely Barbosa, 54, e o segurança Francinaldo Nunes, 53, aproveitaram o sábado para conhecer o que consideram um ponto turístico imperdível. Acordaram cedo, botaram roupas de praia e atravessaram 24 quilômetros entre Bairro Novo, Olinda — onde estão hospedados — e a igrejinha de Nossa Senhora da Piedade, duas cidades depois, em Jaboatão dos Guararapes.
Apesar dos trajes de banho, fizeram o esforço de ir até lá para não entrar no mar. O objetivo é outro: ver com os próprios olhos o local onde ocorreram no último mês dois ataques de tubarão.
O casal soube pela televisão, ainda em Natal (RN), onde vive, dos incidentes que ocorreram na praia de Piedade, nas proximidades do número 1700 da Avenida Bernardo Vieira de Melo. Dois em 15 dias.
Em 10 de julho, um homem morreu após ter a mão arrancada e um ferimento profundo na coxa, provocado por um tubarão. Em 25 de julho, outro rapaz teve ferimentos na coxa e no glúteo, também causados pelo animal. Os episódios, que poderiam causar repulsa, na verdade alimentam o mistério e a curiosidade sobre o trecho de praia localizado em frente à Igrejinha de Piedade.
É sábado. Menos de uma semana depois do último caso, a praia está quase vazia de pernambucanos, mas cheia de gente querendo contar causos sobre ataques de tubarão — e de turistas fascinados por visitar o local. O mar está interditado para banho por tempo indeterminado.
Vinte bandeiras instaladas na faixa de areia anunciam o risco. As roxas sinalizam o perigo de ataque de tubarão. As vermelhas, o de afogamento. Há placas fixas, com letreiros garrafais em azul. Há também os avisos tradicionais, em branco e vermelho, com imagens de um tubarão, corroídos pela maresia, recordando que o problema ali é antigo.
Triciclos e viaturas da Guarda Municipal e da Secretaria de Turismo, Cultura, Esportes e Lazer de Jaboatão trafegam pela areia, com as sirenes piscando, da altura do Hotel Costa Mar até a divisa com a Praia de Boa Viagem, no Recife. O trecho, de 2,2 quilômetros, é o que está fechado para banho — em uma operação que visa investigar por que, depois de três anos, voltou a acontecer um incidente com tubarão nessa praia. O último havia ocorrido em junho de 2018, quando um homem de 34 anos foi abocanhado na perna direita, perna esquerda, braço direito e braço esquerdo.A curiosidade não mata
Sentados à beira-mar, em uma das cadeiras mais próximas da água, Suely e Francinaldo descobrem um dos motivos para tantos ataques de tubarão em frente à Igrejinha de Piedade.
Com apenas uma hora de observação, contabilizam 20 banhistas que se aproximaram para colocar um pé ou parte do corpo no mar. Estão focados e até animados, na observação, com o que parece ser uma diversão à parte da visita. Enquanto comem, apontam para mais um homem indo até a beira da água, ao lado de um triciclo de fiscalização. "O tal do brasileiro é teimoso", diagnostica Suely.
Os dois se descrevem capturados pela forma como os ataques acontecem naquele trecho, por isso não se importaram em dirigir até Jaboatão para passar algumas horas em frente ao mar de Piedade. "Viemos para fazer turismo mesmo. Queríamos ver até como estava sendo feito o procedimento de segurança", conta Francinaldo.
Enquanto o casal contabiliza afoitos, as placas instaladas na orla são capturadas pelas câmeras de celular de transeuntes e banhistas. Todo mundo parece querer um registro da praia onde dois homens foram mordidos por tubarões em julho.
Por trás dos incidentes, a despeito das imagens das vítimas mutiladas, divulgadas por desconhecidos nas redes sociais, há menos medo e mais imaginação.
A bancária Letícia Olovics, 29, saiu do Cabo de Santo Agostinho para visitar a praia de Piedade. Quase de regresso a São Paulo, a paulistana fez questão de aproveitar as últimas horas em Pernambuco para ir ao local com a tia, Denise Olovics, 47, que mora no estado há quatro meses. O único motivo era conhecer a praia dos ataques de tubarão.
"Antes de eu vir para cá, todo mundo falava: 'toma cuidado com as praias'. Aí, quando eu vi o que aconteceu, disse: 'a gente tem que ir lá, tia, esse lugar vai virar um fenômeno, vai ficar conhecido'", conta Letícia.
As duas tiraram fotografias das placas, gravaram Stories para o Instagram, pegaram panfletos de uma das três mulheres que estavam distribuindo material educativo na areia. "Virou um ponto turístico", explica Denise.
Letícia tinha um desejo a mais, não concretizado, para frustração dela. "Eu sou doida para ver um tubarão. Será que eles aparecem ou são tímidos?". Enquanto esteve de férias, a bancária visitou praias do litoral de Pernambuco e Alagoas. Não entrou em nenhuma, por medo. Denise, tampouco, garante. O máximo que fez, durante todo o tempo em que vive no estado, foi tomar banho no mar de Carneiros, a uma hora e meia de Piedade — e fora o perímetro de risco para ataques de tubarão na Costa pernambucana.
A fama se justifica
Os recentes ataques no mar em frente à Igrejinha de Piedade não são casos isolados, somam a uma lista antiga. Foi em um dia de domingo, 28 de junho de 1992, que ocorreu o primeiro incidente contabilizado oficialmente pelo Cemit (Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões). Dali em diante, Pernambuco passaria a ser conhecida pelos ocorridos. Os esportes náuticos seriam proibidos. As gerações futuras desenvolveriam um medo, intrínseco a tantas menções de cuidado, do mar da orla das cidades metropolitanas.
Em quase 30 anos de contagem oficial, são 64 incidentes com tubarão na área continental pernambucana, além de quatro casos em Fernando de Noronha. A área da Igrejinha de Piedade conta, sozinha, 14 episódios. Os últimos quatro, de 2018 a 2021, ocorreram nesse pedaço de mar. Sete pessoas morreram após o ataque ali. O local responde, sozinho, por dois de cada 10 ataques de tubarão que ocorreram em Pernambuco. É onde mais ocorrem casos.
Ao longo de todos estes anos, várias foram as teorias e os estudos acadêmicos, mas ninguém tem um motivo único para justificar essa realidade. O que se sabe é que, no trecho da orla de Piedade, a praia tem uma profundidade de dois a três metros. Lá, passa um canal de cerca de 6,5 metros de profundidade, por onde transitam os tubarões para se alimentar, que está a menos de 50 metros da faixa de areia. Isso, somado às ações humanas sobre a natureza -- os rios e manguezais que compõem a costa pernambucana -- justificariam os ataques.
O trágico quase cômico
O turismo no entorno da Piedade bebe na atmosfera transmitida pelos próprios frequentadores. A quantidade de placas de alerta, as estatísticas de incidentes com tubarão ou mesmo os recentes casos nem de longe criam o medo necessário para afugentar a população. Pelo contrário: ao mesmo tempo em que o tema alimenta uma mística provocativa e sedutora, há uma espécie de banalização dos fatos. Todo mundo tem uma brincadeira sobre.
Ter ataque de tubarão é tão folclórico quanto a cerveja, o caldinho — bebida típica local — e o pagode do Ivan, a festa promovida toda segunda-feira, antes da pandemia, por um dos barraqueiros mais antigos da região.
Há 25 anos trabalhando na área, José Ivan já viu diversos ataques. Perdeu a conta. Quase todas as vezes, acontece o mesmo, diz. A pessoa sai da água ensanguentada, é socorrida pelos Bombeiros do posto instalado bem em frente à barraca dele, o povo corre para ver, depois volta a tomar cerveja e comer petisco. Foi assim no último dia 25 de julho, garante. "Eu estava em frente ao local onde aconteceu, atendendo uma mesa. A gente já tinha chamado ele várias vezes, umas três. Quando ele estava voltando para a areia, aconteceu", lembra.
A descrição de Ivan reproduz a vulgarização dos ataques. Não há surpresa ou indignação. Não há medo nem susto. A ausência de sentimentos na fala é repetida pelos Bombeiros do posto em frente. Ninguém quer parecer amedrontado. Trabalhar ali tem um status de glamour e heroísmo, uma certa vaidade. O mesmo ocorre com os ambulantes, que confessam inclusive entrar no mar nos dias de folga. Para muitos deles, aquele trecho de praia é a única diversão pública e gratuita disponível, então há uma tensão entre a necessidade de lazer e o risco.
Ivan diz não entrar no mar há anos, não pelos tubarões, mas por cansar de tanto trabalhar ali. Somente um dia de ataque ficou guardado em sua mente, uma história que mescla realidade e contornos de ficção, mas que o barraqueiro garante ter ocorrido como conta. Uma verdadeira imagem cinematográfica. "Eu estava aqui, quando um homem começou a pedir ajuda. Sabe aquela cena de filme de tubarão quando a pessoa levanta o braço, é levantada para cima e depois a água começa a borbulhar de sangue? Pronto, foi igual."
Ele voltou a trabalhar há dois meses, depois de passar tempos fechado, por causa da pandemia. Lotava as 30 mesas em um fim de semana normal. O último ataque, apesar de ter atraído turistas, afugentou os locais. No sábado, até às 13h, havia três mesas com clientes na barraca. O ambulante Jacknilson Santos, 27, costumava vender nove litros de caldinho por dia no fim de semana. Precisou reduzir a produção pela metade para não ter prejuízo.
Para eles, o impacto nas vendas é a pior parte dos ataques. Por isso, Ivan se irrita quando um cliente entra na água. A prefeitura de Jaboatão colocou 120 pessoas, no fim de semana, para operar a proibição ao banho de mar. Organizou um auxílio de três parcelas de R$ 180 para os 65 barraqueiros instalados no trecho interditado. Uma estratégia para reter o impacto.
Apesar do recente episódio e dos lamentos com a clientela, Ivan diz que todos ali aprenderam a conviver com os acidentes e, quase como uma contradição, defende não haver problemas em entrar no mar com a água abaixo do joelho. "O ser humano é acostumado com o perigo. Até dentro de casa, você está em risco."