Por que a Lei Maria da Penha, criada há 15 anos, é exemplo de aplicação no Judiciário
Desde a sanção, em 2006, a legislação modificou a forma como o sistema jurídico lida com casos de violência contra a mulher
Quase quarenta anos se passaram desde o ano em que Maria da Penha Maia Fernandes sobreviveu, por duas vezes, à violência do ex-companheiro. A escalada de agressões que culminaram em duas tentativas de feminicídio contra ela, em 1983, não é uma experiência singular. Quatro décadas depois, uma a cada quatro mulheres afirma ter sofrido algum tipo de violência no Brasil durante a pandemia de Covid-19.
O caminho das vítimas até denunciar a violência em 2021, no entanto, é bem diferente do traçado pela cearense Maria da Penha na década de 1980. Promulgada no dia 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha modificou o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e chega aos 15 anos de existência como referência internacional.
"Temos muito o que celebrar: a progressiva quebra do silêncio das mulheres em situação de violência doméstica, estrutural, institucional, importunação sexual, sendo que as mulheres pretas ainda enfrentam o racismo", diz Maria da Penha, ao rememorar os 15 anos da norma.
Além da previsão de punição mais rigorosa aos agressores, a legislação veio com o objetivo de oferecer uma rede de proteção e assistência à vítima de violência. Mecanismos que pareciam distantes para quem buscava atendimento antes da criação da lei - assim como para quem julgava os casos de violência.
MULTA OU CESTA BÁSICA
"Naquela época, antes da Lei Maria da Penha, esses crimes eram considerados como crimes de menor potencial ofensivo. A mulher que era agredida ou ameaçada prestava a queixa, e o processo ia para o Juizado Especial. Lá, eram chamados os dois e era tentada uma conciliação", lembra a juíza Rosa Mendonça, titular do 1º Juizado da Mulher em Fortaleza.
Antes da existência da norma, ela atuava em Baturité, a cerca de 100 km de Fortaleza, e recorda que, se a tentativa de reconciliação entre vítima e agressor falhava, a punição estabelecida era a pena pecuniária - que variava entre o pagamento de multa e de cestas básicas.
Uma penalidade que acabava, muitas vezes, sendo paga pelas violentadas. "As mulheres pagavam as cestas básicas, pagavam a multa. Elas mesmas pagavam aquilo pelos agressores. Eu ficava chocada. Se a mulher é vítima, como é que ela vai pagar? Mas era algo que acontecia", lembra.
A punição leve era, por vezes, argumento utilizado para desestimular a denúncia da mulher, ainda na delegacia.
"Quando não era feita claramente a pergunta 'o que foi que você fez para apanhar?', era sempre dado (o argumento) de 'ah, mas vocês vão resolver isso depois' ou 'foi uma briguinha, um momento de descontrole, vai ficar tudo resolvido'. Diziam: 'a senhora quer continuar com isso mesmo?' e 'se a senhora levar à frente, ele for condenado só a pagar uma cesta básica?'". A Lei Maria da Penha acabou com isso".
Defensora pública
A lembrança da defensora pública é da época em que atuava como advogada, mas Karinne Matos continuou com atuação ligada à temática. Ela e a juíza Rosa Mendonça, inclusive, se encontrariam em 2008, quando Matos se tornou a primeira defensora pública a atuar no 1° Juizado da Mulher, criado no final de 2007.
AMPARO ÀS VÍTIMAS
A criação de Juizados específicos para lidar com casos de violência contra a mulher é estabelecida em um dos trechos da Lei Maria da Penha, com a previsão de equipe de atendimento multidisciplinar abrangendo a área jurídica, mas também psicossocial e de saúde.
"Tem não só o caráter de tipificação da conduta e de aplicação de penas aos agressores, mas tem a questão estrutural. A Lei Maria da Penha trouxe toda uma estrutura que interliga o Judiciário e a rede de proteção para proteger as mulheres vítimas de violência", explica a presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE), Christiane Leitão.
Treze artigos da legislação determinam a integração entre o Juizado e diferentes equipamentos de assistência social, tais como casas-abrigo, delegacias, serviços sociais e serviços de saúde. O objetivo é garantir que, após denunciar, a vítima tenha condições de permanecer longe do agressor.
"A aplicação rigorosa da legislação e o fortalecimento das instituições são importantes para que essa mulher se sinta segura. Nós avançamos muito, mas quanto maior o número de equipamentos - espalhados por Fortaleza, pelo Ceará e pelo Brasil como um todo - mais nós iremos evoluir", afirma Karinne Matos.
O apoio psicológico, a capacitação e inserção no mercado de trabalho, o pedido por benefícios sociais, como o Bolsa Família para as que sofrem com a violência, são alguns dos instrumentos utilizados para permitir que a mulher reconstrua a vida longe das agressões do ex-companheiro.
"Nós incentivamos a mulher a denunciar, mas precisamos dar assistência. É um leque muito grande que o juiz e a juíza que trabalha com (casos de) violência doméstica tem que fazer. Acabou aquela figura do juiz ficar só no seu gabinete despachando. Isso é muito importante, mas toda essa parte das políticas públicas fez com que o Judiciário tivesse outra visão".
UM DOS 'CORAÇÕES' DA LEI
Outra maneira de se preservar as vítimas são as medidas protetivas de urgência - incluindo afastamento do agressor do lar, a suspensão do porte de arma do agressor e o distanciamento da mulher.
A juíza Rosa Mendonça afirma que as medidas protetivas representam um dos "corações" da Lei Maria da Penha. O outro, completa, são as questões de gênero.
"Eram questões desconhecidas para nós (do Judiciário). Agora, o Conselho Nacional de Justiça determinou que os Tribunais façam capacitações falando sobre essa questão, para que possamos julgar vendo que a questão da mulher é diferente. Não para ter maior privilégio, mas porque existe uma diferença por conta da cultura", observa a magistrada.
A advogada Christiane Leitão acrescenta que, neste ponto, a interseccionalidade também se faz presente e confere abrangência à "letra da lei".
"A questão de gênero é o que pauta a lei, dentro de relações afetivas. (Por exemplo) O feminicídio tem maior incidência em mulheres negras, (...) mulheres LGBTs são mais sujeitas a sofrer violências. A Lei Maria da Penha vai prever as políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher que tem que levar em conta essas questões". CHRISTIANE LEITÃO
Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-CE
PARA ONDE AVANÇAR
A Organização das Nações Unidas (ONU) apontou a Lei Maria da Penha como a terceira melhor legislação do mundo no combate à violência doméstica. Atuando em campos distintos dentro do sistema jurídico, Karinne Matos, Rosa Mendonça e Christiane Leitão concordam ao reconhecerem o enorme avanço trazido pela norma.
Uma evolução obtida não apenas em 2006, quando foi promulgada, mas nas mudanças e melhorias feitas à Lei Maria da Penha nos últimos 15 anos.
"Mas sempre há o que se evoluir", indica Karinne Matos. Ela cita a necessidade de fortalecer os mecanismos de denúncia e de aumentar o rigor quanto à punição. "Talvez um pouco mais de rigor na aplicação dessas penalidades também traga inibição (para o cometimento do crime)", argumenta.
O aumento do investimento em equipamentos da rede de assistências às vítimas também se faz necessário, aponta a defensora pública.
"Precisamos de estrutura. Tudo que fizermos é pouco. Por mais que tenha pessoal qualificado, precisamos de mais, porque a gente está vendo as mulheres tendo consciência que sofrem a violência. O atendimento é, hoje, uma das maiores dificuldades. Precisamos aumentar as redes de atendimento", propõe.
Maria da Penha, por sua vez, também ressalta ser necessário ampliar o alcance, inclusive geográfico, da lei. "Desde a sua criação há 15 anos a aplicabilidade da Lei Maria da Penha ainda é desconhecida nas regiões do interior do nosso País", afirma.