“Teremos uma vacina, se tudo correr bem. O desafio será distribuí-la”
Diretora brasileira da OMS, a médica Mariângela Simão detalha as estratégias globais contra a pandemia
“Eu gostava de ver filmes de catástrofe, hoje não gosto mais.” Em tempos de isolamento compulsório, essa queixa poderia ser vista em qualquer rede social ou conversa de WhatsApp. Mas vem de uma especialista que está na linha de frente do enfrentamento global ao novo coronavírus, a brasileira Mariângela Simão, diretora-assistente na Organização Mundial da Saúde. Sua missão na entidade? Encontrar e garantir o acesso a novos medicamentos e vacinas em testes para a doença que ela e outros sanitaristas, como o descobridor do Ebola, Peter Piot, e o americano Anthony Fauci, principal médico do governo dos EUA, definem como o “pesadelo de qualquer sanitarista”: um vírus respiratório e de fácil transmissão.
Daí vem seu recente desapreço pelo cinema. “Nos filmes, o personagem doa sangue e no dia seguinte tem uma vacina.” Na vida real, a imunização deve demorar ao menos um ano para chegar ao mercado. A OMS coordena estudos com medicamentos em 45 países, o Brasil incluído. Enquanto a cura não vem, o combate ao coronavírus dependerá da resposta ágil e adequada de cada país.
Nascida em Curitiba, a doutora Mariângela vive na Suíça há dois anos e meio, quando foi nomeada chefe da área de Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos da OMS. Com mais de três décadas de experiência em políticas públicas para saúde, ela juntou-se à organização depois de passagens pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids e o Ministério da Saúde do Brasil. No intervalo de atribulada agenda de reuniões na sede da organização em Genebra, onde coordena uma equipe de 250 especialistas, ela concedeu esta entrevista a CartaCapital.
CartaCapital: A OMS e governos do mundo todo têm endurecido as orientações contra o coronavírus. O que mudou em duas semanas?
Mariângela Simão: Houve mais mortes que o esperado. E isso soou um alarme. Em especial na Europa, que tem trânsito livre de pessoas, serviços, mercadorias, e por isso verificou logo a transmissão no continente. É um vírus novo, que não conhecemos o suficiente. E para o qual ninguém tem imunidade, já que ele nunca apareceu antes. Ninguém pode se enganar, este é um vírus altamente transmissível. A pior coisa que um sanitarista poderia esperar era um vírus de fácil transmissão respiratória, pois é muito difícil de controlar. É um pesadelo de saúde pública. É o que temos agora.
CC: Por que o contágio varia tanto de país para país?
MS: Países que fecharam rápido o comércio e tomaram medidas mais restritivas de circulação, como a Dinamarca, conseguiram conter melhor a doença. É o caso da China, que impôs medidas bastante drásticas e agora está voltando aos poucos ao normal. É esperado que casos ainda ocorram por lá, mas em menor número, porque há menos suscetíveis ao vírus. É diferente de quando se chega em um ambiente “virgem”, com todos vulneráveis ao mesmo tempo. Na Itália, o pico de transmissão comunitária está forçando ao máximo um sistema de saúde que é público e de boa qualidade. O Hemisfério Sul está entrando no inverno. O número de casos em países em desenvolvimento está crescendo muito, e esses países enfrentam enormes desafios na área da Saúde. Por isso, no Brasil, quanto mais cedo algumas medidas forem tomadas, melhor.
CC: A Itália e a Espanha começam a achatar suas curvas de contágio. Os Estados Unidos estão começando a subir a montanha. Como a OMS vê as respostas do país?
MS: A OMS não se posiciona sobre questões internas de cada país, mas recomenda medidas coletivas, como os testes. E não há testes em quantidades suficientes. Os Estados Unidos fizeram um esforço massivo para ampliar a testagem.
Tiveram problemas no início, mas conseguiram agora ampliar. O que se pode dizer do comportamento da doença, no limite do possível, é que ele vai depender das respostas que cada país poderá dar. As medidas que a OMS recomenda, e que são baseadas em evidências científicas e da saúde pública, visam diminuir a velocidade da transmissão, para que o sistema de saúde de cada nação possa dar conta dos casos mais graves.
CC: Em que capítulo estamos na busca pela cura do coronavírus?
MS: Existem em torno de 200 estudos clínicos em curso, com diferentes drogas. A OMS lançou um estudo e até agora 45 países toparam participar. No Brasil, a Fiocruz vai coordenar. Temos cinco braços, um com as respostas convencionais e os outros quatro com remédios: um com uma droga experimental chamada Remdesivir, que foi desenvolvida para combater o Ebola, mas não funcionou. Outros dois com medicamentos combinados para Aids (Ritonavir, Lupinavir e Interferon Beta). O quarto é a Cloroquina. Estas são as drogas que a OMS considera mais promissoras, mas há outras sendo estudadas.
CC: E a vacina?
MS: Há 50 candidatos a vacina sendo estudados. Só dois começaram a primeira fase, a de testagem. Os resultados devem demorar ao menos um ano. Vamos ter uma vacina, se tudo correr bem. Mas é preciso entender que, para colocar um produto novo no mercado, é preciso testar e saber se ele é seguro. E é por isso que demora. Tendo a vacina eficaz e segura, o desafio será distribuí-la. É preciso ser acessível e disponível a todos os países. Tem luz no fim do túnel, mas vai demorar para sairmos dele…
CC: No Brasil, a Cloroquina tem sido anunciada pelo presidente como panaceia…
MS: Muitos querem uma cura milagrosa. O que há sobre a Cloroquina até agora são estudos muito pequenos, com 20 ou 30 pacientes. Por causa da corrida até a farmácia, pacientes que precisam do remédio para ter uma boa vida não estão conseguindo encontrá-lo. Não adianta estocar remédios e não se deve tomar remédios contra vírus sem indicação médica. Nenhuma dessas drogas em teste tem, até agora, eficácia comprovada.
CC: Dá para prever em quantos meses o mundo começará a voltar ao normal?
MS: O mundo hoje é global. Ninguém é autossuficiente mais, seja em comércio, seja nas relações pessoais. Então depende de como os países tomarão as medidas necessárias para conter a transmissão e tratar dignamente os infectados. Podem ser dois, três, quatro ou cinco meses… Tudo depende de como cada país vai responder.