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Caça às bruxas faz o terror imperar em Papua-Nova Guiné

A AFP teve acesso a um vídeo que mostram cenas de violência contra uma suposta bruxa.

Por ISTOÉ 04/01/2019 16h04
Caça às bruxas faz o terror imperar em Papua-Nova Guiné
Rachel mostra em 20 de novembro de 2018 em sua casa do Vale de Tsak, as cicatrizes das torturas infligidas por moradores que a acusavam de bruxaria. - Foto: AFP/Arquivos

O terror reina em várias regiões das Terras Altas da Papua-Nova Guiné, onde algumas tribos lincham pessoas que acusam de bruxaria e de encarnar as forças do mal.

Uma mulher de idade avançada se contorce de dor e suplica enquanto é espancada e estuprada no chão de uma cabana. Depois a arrastam para fora, nua, ensanguentada e moribunda. Uma horda de moradores a espanca e queima, até que ela para de se mexer.

Quase todos participam. Ninguém se preocupa em esconder seu rosto. Ninguém impede o linchamento. Acreditam que estão agindo bem, que é a única forma de deter uma bruxa que não é humana. A acusam de matar um dos seus mediante supostos poderes sobrenaturais e de devorar seu coração.

Alguém grava a cena com um celular. A AFP obteve o vídeo.

Com dezenas de gravações nas mãos da polícia real de Papua-Nova Guiné, as imagens demonstram a brutal caça às bruxas neste país da Oceania.

Durante os últimos anos, foram registrados ao menos 20 assassinatos deste tipo e dezenas de agressões na região remota das Terras Altas.

Em locais isolados, como o Vale de Tsak, as agressões se estenderam “como rastilho de pólvora”, inclusive contra um ex-presidente do Supremo Tribunal, conta o delegado Epenes Nili.

A crença na bruxaria existe há muito tempo na província de Enga e, de forma geral, em todo o país. Mas, segundo os pesquisadores, os linchamentos são algo novo nesta província, assim como a violência extrema e as agressões sexuais.

– Mortes ‘inexplicáveis’ –

“É um fenômeno novo”, afirma Anton Lutz, um missionário luterano que viveu muitos anos na província de Enga. Ele socorreu várias pessoa acusadas de bruxaria, incluindo crianças de seis anos.

“Havia antigas crenças sobre os fantasmas, as pedras que podem falar e uma série de coisas”, explica. “Mas a prática que consiste em acusar uma mulher de ser responsável por uma morte e torturá-la sadicamente, submetê-la à violência sexual durante horas até que morra, é algo novo”.

“Começou há uns cinco anos. Aumentou muito no ano passado. Tínhamos a impressão de que havia um ataque a cada semana ou a cada 15 dias”.

Segundo o missionário, cada explosão de ira coincide com um falecimento por causas inexplicáveis para os moradores do local.

Infartos, diabetes e aids são cada vez mais frequentes, mas pouco conhecidos. Algumas pessoas atribuem mais facilmente uma morte à bruxaria do que ao colesterol.

Recentemente, por exemplo, um motorista bêbado provocou um acidente no qual faleceram oito pessoas. O povo queria saber o motivo pelo qual alguns morreram e outros não.

Alguns, inclusive, acreditam que as bruxas não agem sozinhas.

O aparecimento de “glasmans” (como “adivinhos” que percorrem as aldeias para detectar bruxas em troca de dinheiro) explica em parte o aumento de assassinatos, alguns dos quais ordenados por tribos como represália.

– Rezar em silêncio –

Assim como a idosa do vídeo, Rachel, de 55 anos, mãe de dois filhos, foi acusada de “sanguma”, bruxaria ou magia negra.

Sua vida deu uma guinada em abril de 2017, quando compareceu em família ao funeral de um integrante de uma tribo próxima. Quando estava prestes a ir embora, foi pega pelo filho do falecido.

Ela não sabia, mas outra mulher foi acusada de estar relacionada com a morte do homem e, sob tortura, disse que Rachel pertencia a uma assembleia de bruxas.

Rachel se declarou inocente, mas não adiantou nada. Tiraram a sua roupa, a estupraram, queimaram-na com facões, barras de ferro e pás durante um dia inteiro. Alguns dos atos atrozes foram cometidos por conhecidos seus.

Me pediam que “devolvesse o coração” da “vítima”, conta ela à AFP, enquanto algumas pessoas se aglomeram ao redor da cabana para descobrir o que estava acontecendo.

“A dor era insuportável”, lembra. Foi amordaçada e rezava em silêncio: “O Senhor me deu a missão de cuidar dos meus filhos e, se eu morrer, quem cuidará deles?”, orava.

Então, uma discussão começou entre os membros dessa multidão de cerca de 1.000 pessoas. Foi o que salvou sua vida.

– Diferenças importantes –

As caças às bruxas são diferentes de acordo com as regiões deste país de oito milhões de habitantes e com cerca de 800 línguas diferentes.

Em Enga quase todas as vítimas são mulheres. Na ilha de Bougainvilliers, são quase sempre homens. Em Port-Moresby, a capital, são de ambos os sexos.

Miranda Forsyth, pesquisadora da universidade nacional australiana, estudou centenas de casos e constata o surgimento de tendências sinistras.

Descreve “um cenário” típico nos linchamentos de “bruxas” em Enga. São pessoas que tentam lidar com “altos níveis de incerteza”, afirma.

Na ausência de uma solução para o problema, “todo o país está num estado de confusão paranoica”, acrescenta.

Quase dois anos depois de seu calvário, Rachel é capaz de caminhar e voltou para a aldeia, mas vive com medo.

“A situação ainda está tensa”, murmura. As feridas ainda não estão completamente curadas porque os agressores invadiram a clínica onde estava hospitalizada e forçaram-na a fugir.

“Preciso que me operem, mas tenho medo que os agressores me matem se eu for. Vivo com dor”, lamenta.

“Espero que as coisas se acalmem para que eu possa ir ao hospital. Por enquanto é impossível”.