Cercear liberdade acadêmica mostra rumo errado do país, diz líder da SBPC
Para o presidente da SBPC, essa política de sufocar os cofres da educação e da pesquisa já foi notada e denunciada pelas maiores publicações de imprensa
Os cortes de verba a universidades federais ameaçam o direito à cidadania, à expressão e à liberdade acadêmica. A opinião é de Ildeu de Castro Moreira, doutor em física, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). "A universidade é um espaço de discussão aberta no mundo inteiro, por isso mesmo ela é criativa --e ela tem continuar assim. Cercear isso é uma coisa preocupante", diz.
Em entrevista ao UOL nesta terça-feira (30), o líder da entidade que congrega 130 sociedades científicas do país disse que o Brasil está dando um "tiro no pé" ao contingenciar verbas para ciência, pesquisa e educação superior no Brasil.
Ele cita a redução, por exemplo, de recursos da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que financiam grande parte da pós-graduação no país. "Esse corte enorme ameaça não só a ciência e tecnologia nesse momento --e ela faz isso--, mas também afasta os jovens da ciência por não terem motivação. E isso pode afetar seriamente o futuro do país", afirma.
Além disso, Castro ainda ressalta que o país corre risco de não ter capacidade de enfrentar uma emergência em saúde pública, como foi com o vírus da zika, nem de acompanhar o avanço outros em áreas como agricultura, pesquisa do pré-sal e desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Para o presidente da SBPC, essa política de sufocar os cofres da educação e da pesquisa já foi notada e denunciada pelas maiores publicações de imprensa do mundo. "A ciência brasileira cresceu muito nas últimas décadas e, portanto, tem uma preocupação internacional com ela", diz.
Em protesto, a SBPC fará na próxima semana uma série de atos no Congresso Nacional e no MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), em Brasília, para tentar convencer o governo a voltar atrás nos cortes efetuados. Confira a seguir a entrevista.
UOL - Como o senhor avalia os sucessivos cortes do governo federal das verbas para pesquisa e ciência no país?
Ildeu de Castro Moreira - Os contingenciamentos enormes no orçamento do MCTIC vão atingir profundamente a ciência brasileira. A gente já vinha de um processo de redução de recursos drasticamente, e esse corte de 42% ameaça a sobrevivência de vários aspectos da ciência brasileira. O CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que estava com déficit de R$ 300 milhões para pagar suas bolsas neste ano, vai ficar ainda mais afetado. A Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) também. O Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico está com praticamente 90% do recursos contingenciados.
Isso significa que o principal fundo de ciência brasileira --que inclui também apoio aos empresários, essenciais para gerar inovação na sociedade-- vai ter uma situação muito difícil de sobrevivência. Eles são essenciais para as estruturas das universidades, de laboratórios de pesquisa. Os institutos do ministério também vão ser afetados na ordem de 25%, pelo menos; logo eles que já estavam com dificuldade de fechar as contas neste ano. O ministro Marcos Pontes disse recentemente no Congresso que foi colocada uma corda no pescoço da ciência. Nós vamos, nos dias 8 e 9 de maio, fazer uma ação dentro do Congresso Nacional, depois vamos ter um dia inteiro de discussão com o ministro para traçar estratégias e fazer uma pressão política legítima para reverter esse quadro.
Mas não é só o MCTIC que tem sofrido com cortes.
Não, eles estão afetando outras áreas. O MEC também foi vítima, e isso afeta a Capes, que é essencial para a sobrevivência da pós-graduação brasileira. Grande parte da da pesquisa que é feita no Brasil vem de lá, é crucial. Ele também apoia a formação de professores da educação básica. Possivelmente terá uma redução de recursos de um pouco mais de 20%, e isso vai afetar bastante o funcionamento da Capes. A gente está bastante preocupado com isso e temos nos manifestado todo tempo. Esse corte enorme ameaça não só a ciência e tecnologia neste momento, mas afasta os jovens da ciência por não terem motivação. E isso pode afetar seriamente o futuro o país.
A ciência e a tecnologia são essenciais para sair da crise. A gente está dando um tiro no pé
Na prática, que problemas esses cortes vão causar à vida das pessoas? E por que elas devem se preocupar?
Recentemente teve a epidemia do vírus da zika, e o Brasil tinha laboratório, estrutura para tomar medidas de prevenção, estudar. Rapidamente a pesquisa aqui deu respostas. Mas outras epidemias, outras ameaças poderão vir. Os laboratórios de pesquisa das universidades, das instituições, têm de estar capacitados para isso. Se não tivermos pesquisadores qualificados, se as nossas equipes de pesquisa forem desmontadas, se os laboratórios não estiverem prontos, se os jovens se afastarem da ciência, nós não vamos ter condições de responder a essas questões de emergência em saúde pública com os elementos necessários.
Por outro lado, se você desmonta a estrutura de ciência e tecnologia, afeta outras áreas como a agricultura. Isso é uma questão que avança no tempo: África e China também estão desenvolvendo nessas áreas, e o Brasil precisa estar o tempo todo atualizado. A gente pode ficar para trás. A questão do pré-sal: se não continuar investigando, pesquisando, inovando, você fica para trás. O Brasil pode ficar para trás em certos setores como, por exemplo, na Amazônia. A biodiversidade brasileira tem enorme potencial econômico se fosse explorada da forma adequada e inteligente, mas para isso precisa de muita pesquisa.
O presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista que a maioria das pesquisas do país eram feitas por instituições privadas. Isso é verdade?
Com certeza não. No Brasil, 95% da produção científica é feita nas instituições públicas, como universidades, ou por órgãos de pesquisa como Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Na parte privada, as que mais produzem ciência são as universidades comunitárias, como a PUC (Pontifícia Universidade Católica), e todas elas têm investimento da Capes, do Finep. Isso ocorre no mundo inteiro. A pesquisa básica é apoiada pelo órgão público, é assim em qualquer país do mundo. A iniciativa privada entra muito mais na coisa aplicada.
Como o senhor analisa a ideia do MEC em cortar verbas e estudar até suspender cursos de filosofia e sociologia para privilegiar outros com mais "retorno imediato"?
Fizemos uma nota sobre isso, e lá está tudo que penso [a nota critica a medida e diz que as ciências humanas e sociais não são ideologias]. Aquela nota foi da SBPC, mas temos outras dezenas de sociedades que declararam apoio e que não são da área de humanas. Elas também estão extremamente preocupadas com esse tipo de visão que há.
Mas o senhor vê algum tipo de censura ou de patrulhamento ideológico por parte do MEC em medidas assim?
Tem coisas localizadas, mas o governo não é homogêneo, tem muitos setores ali dentro, não dá para fazer uma caracterização generalizada. Mas, por exemplo, no MCTIC temos uma relação bastante boa com o ministro, que vai nos receber agora. Mas certamente há setores que nos preocupam bastante, como essa questão da liberdade acadêmica, da autonomia da universidades, de recursos para manter em operação fundamental as instituições de pesquisa.
Essa autonomia e essa liberdade já estão sendo perdidas?
O que acontece são situações, por enquanto, mais localizadas. Mas os indicativos são preocupantes. Quando você diz que ciências humanas e sociais podem ter suspensão de recursos, temos uma sinalização muito perigosa. Isso certamente gera uma situação de receio em toda a comunidade acadêmica. A universidade é um espaço de discussão aberta no mundo inteiro, por isso mesmo ela é criativa --e ela tem continuar assim. Cercear isso é uma coisa preocupante.
O MEC, inclusive, anuncia corte verbas em universidades federais por "balbúrdia". Isso não é preocupante?
Nós tomamos conhecimento dessa questão. Claro que já houve isso no governo passado, como no caso da UFMG, UFSC, que foram ameaças preocupantes, inclusive no caso de Santa Catarina dramático, houve um exagero absurdo [o reitor se suicidou após investigações da Lava Jato]. Todas as questões da universidade, claro, tem de ser investigadas como qualquer área pública, mas isso dentro de princípios e respeito à Constituição. A preocupação que temos é que a Constituição seja preservada. A SBPC foi uma entidade que batalhou muito pela Constituição na década de 1980. Preservar o direito de cidadania, de expressão e liberdade acadêmica são questões centrais para nós.
Qual cenário o senhor vê para o país caso siga nessa direção tomada?
O cenário é muito preocupante. Estamos fazendo esse esforço grande. A SBPC não cede em nenhum momento, tem 70 anos de luta. Já passamos por momentos difíceis da ciência, da política brasileira, mas a gente sempre permaneceu nessa batalha defender a ciência, a tecnologia, a educação de qualidade. Claro que estamos muito preocupados com o rumo que algumas coisas estão tomando, essas cerceamento de diversas áreas, na área acadêmica. Acho que as universidades, as instituições de pesquisa têm muita coisa a aprimorar, mas elas são um patrimônio fundamental do povo brasileiro. Tem de ser preservado o que foi construído ao longo de décadas. Não podemos destruir isso porque é uma garantia que temos e que já teve impacto do ponto de vista econômico, social.
Esse processo já chama a atenção da comunidade acadêmica internacional, não é?
Com certeza já. Nas últimas semanas saíram matérias nas revistas Science e Nature e em várias outras publicações internacionais mais importantes de ciência no mundo, apontando esse corte gigantesco de recurso. O que isso significa? Que a ciência brasileira cresceu muito nas últimas décadas e, portanto, tem uma preocupação internacional com ela. Isso está muito claro não só pelas revistas mais importantes do mundo, mas por jornais dos EUA, de França, de Portugal, da Inglaterra, que trouxeram reportagens também entrevistando cientistas, ouvindo a comunidade científica brasileira sobre a preocupação do país em ver as tecnologias como algo com que se gasta dinheiro, e não uma coisa fundamental para o país.