Veneno em máscara e fogo com álcool em gel: as novas violências da pandemia
Com novo contexto social em meio à quarentena, surgiram outros tipos de agressão às mulheres

No começo da quarentena para conter a disseminação de covid-19 no Brasil, surgiu uma preocupação de que o isolamento acabasse por aumentar a exposição de mulheres à violência doméstica, uma vez que estariam confinadas com seus agressores.
A preocupação foi confirmada: segundo o Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos, a quantidade de denúncias recebidas nos quatro primeiros meses de 2020 foi 14% maior em comparação com o mesmo período de 2019.
Agora, mais de três meses depois do início do isolamento, vítimas têm relatado outros tipos de violência, ligadas ao contexto da pandemia.
"Já recebi relatos de agressor que impede a mulher de usar máscara, que usa o álcool em gel para colocar fogo na casa, que agride a mulher após ser contestado por ter saído de casa e exposto o resto da família", diz a advogada Gabriela Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre. "É o que podemos chamar de violências típicas da pandemia."
Em um dos casos mais chocantes, ocorrido no dia 22 de junho, em Presidente Prudente, interior de São Paulo, um homem de 55 anos embebeu as máscaras da ex-mulher com veneno para matar insetos. Após ser denunciado por ela, que já contava com medida protetiva para que o agressor não se aproximasse, o homem foi preso.
"Minha casa não é cabaré": mulher foi agredida porque queria ver live de DJ
Segundo Gabriela, há muitos casos novos no contexto da crise, em que homens perderam o emprego ou enfrentam uma crise financeira e tentam retomar o poder perdido dentro de casa por meio da violência. E, aí, qualquer situação mais corriqueira é desculpa para a agressão.
"Chegou até mim o caso de uma mulher que apanhou do marido porque ela queria ver uma live e ele não deixou. Ela queria ver o DJ Alok. O homem surtou, disse que ela não iria ver, que a casa dele não era cabaré e bateu nela", conta a advogada.
Rasgou a máscara para impedir que mulher saísse de casa
A economista Caroline Moraes, fundadora da ONG Nós Mulheres, que atende vítimas de violência doméstica na região da Baixada Fluminense, também afirma estar recebendo pedidos de ajuda de mulheres que passaram por agressões envolvendo itens usados na pandemia.
Em um dos casos, uma mulher teve a máscara arrancada pelo marido para impedir que ela fosse à feira. "Ela conta que ele puxou com tanta força que o elástico da orelha estourou. Ele já era violento, mas o momento faz aflorar novas formas de agressão. Também porque ela é a provedora da casa", diz Caroline. "A pessoa a quem ela poderia recorrer é a mãe, mas a mãe faz parte do grupo de risco. Então estamos dando ajuda psicológica para que a vítima consiga atravessar esse momento e, depois, se livrar do agressor."
Outro caso que tem se tornado comum são ameaças de atear fogo com álcool em gel. Tanto Gabriela quanto Caroline relatam ter recebido denúncias assim. "Uma vítima me procurou porque o marido queria sair com o filho. Ela pediu que não fosse e começaram a brigar, a discutir. Ele então pegou o álcool em gel, espalhou pela casa e a ameaçou. Disse: 'Se inventar história, eu coloco fogo nessa casa'", conta Caroline.
Violência psicológica e ameaças: "Você não tem para onde ir"
As ameaças e a manipulação psicológica que já eram comuns antes da pandemia —como ofender a mulher e dizer que ninguém mais, além do agressor, ficaria com ela— também se intensificaram em meio a um contexto em que a vítima está isolada. "O afastamento da mulher da sua rede de apoio original, o fato de ela não poder se aproximar da família e dos amigos, é mais um motivo para que as violências de sempre se intensifiquem", diz Gabriela.
"Os agressores têm usado esse discurso constantemente: dizem que a mulher deve obedecê-lo já que não pode sair de casa. Dizem: 'Você não tem para onde ir', argumentam que a mãe, que é quem costuma acolher a vítima, é grupo de risco. E assim vão intensificando a violência psicológica."
Caroline ressalta situações que não são novas, mas têm se tornado mais comuns, como o monitoramento do celular da companheira. "Isso aumentou muito, estou recebendo vários casos do tipo. Mulheres que flagram o namorado ou o marido mexendo no celular delas, lendo conversas, vasculhando tudo o que elas escreveram no Whatsapp", diz.
"Percebo que tem relação com a paranoia dos agressores de que as mulheres estão traindo virtualmente. Muitas vítimas me procuram e dizem que não podem falar comigo por causa disso. Já cheguei a falar por telefone com algumas durante a madrugada, para que o marido não ouvisse", afirma Caroline. "Se ele estiver controlando tudo, como ela vai denunciar? É óbvio que não consegue, fica encurralada."
Para quem está passando por uma situação parecida, ela dá algumas orientações. "Se ele for muito violento, pode não ser seguro trocar as senhas. Ele vai ficar ainda mais agressivo. Uma opção é criar um meio que ele não conhece, por exemplo, o Telegram [aplicativo de conversa]. Baixa e esconde no meio dos seus aplicativos para conversar com alguém", sugere. "Nesse momento de quarentena, é preciso achar saídas para mitigar os riscos."
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