Denúncias de assédio por João de Deus geram medo em Abadiânia
Poucos moradores do município aceitam falar abertamente sobre o tema
Silêncio. A palavra, repetida como orientação em quadros e cartazes pendurados por todos os lados da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), retrata parte do cenário na cidade de menos de 15 mil habitantes desde que denúncias de abuso sexual envolvendo um dos médiuns mais famosos do país vieram à tona.
Nas ruas, poucos moradores do município que gira em torno das atividades de João de Deus, nome pelo qual é conhecido o médium João Teixeira de Faria, aceitam falar abertamente sobre o tema. Atribuem a decisão ao temor de represálias e ao silêncio também de João, que fundou o hospital espiritual no município em 1976.
Desde sábado, mais de dez mulheres acusam o médium de tê-las abusado sexualmente durante atendimentos espirituais dentro do escritório que ele mantém na Casa Dom Inácio, local que recebe mais de mil pessoas por dia entre quartas e sextas-feiras.
As denúncias mudaram a rotina na cidade. No início da manhã deste domingo (9), o clima entre turistas e moradores era de incerteza.
Enquanto a Casa tentava seguir as atividades programadas, brasileiros e estrangeiros que viajaram ao local em busca de tratamento espiritual se dividiam entre a defesa do médium e preocupação diante dos relatos.
"Até então, tudo estava indo bem. Mas quando vimos as notícias na TV, ficamos pensando: e se ele for um charlatão?", diz Demir Ali Selen, 28, que veio da Turquia junto com os tios em busca de tratamento para o sobrinho, de três anos, diagnosticado com câncer no cérebro. "É difícil ouvir sobre isso sabendo que levamos mais de 24h só para chegar até aqui."
Apesar da incerteza, a mãe do menino, a dona de casa Sibel Ozture, 42, diz que não planeja desistir por enquanto do "tratamento" espiritual recomendado ao garoto para ser administrado junto com o tratamento médico.
Desde julho, quando a família fez a primeira visita ao local, o menino já passou por uma espécie de "cirurgia invisível", feita com orações, e toma comprimidos de passiflora adquiridos na farmácia no local.
"O que temos visto é muito diferente do que ouvimos nos últimos dias", afirma. "As pessoas dizem isso, mas todas as vezes em que passamos por ele, notamos que ele nunca faz contato com o olhar. Como isso pode ter acontecido?"
Para Andrea Tagliarini, 55, que coordena viagens da Argentina a Abadiânia há sete anos, a situação representa uma espécie de "provação" –não ao médium, mas ao município cuja rotina e economia em boa parte giram em torno da fé.
Nos dias de atendimento de João de Deus, por exemplo, pessoas que chegam à Casa em busca de cura fazem filas que se estendem ao longo da Casa. O médium pode conversar com o visitante ou ficar calado. Em alguns casos, ele entrega um rabisco em um papel, que indica a necessidade de terapia a base de passiflora. Em outros, indica cirurgias que podem ser visíveis ou invisíveis.
Em todos os momentos, João diz ser guiado por "entidades" que incorpora -entre elas, está Santo Inácio de Loyola, que tem uma estátua dedicada a ele no centro da Casa. Desde que apareceu na TV em programas como o da apresentadora americana Oprah, o local tem sido alvo de peregrinações de turistas de todos os lados.
"Visitantes me mandaram mensagens preocupados", afirma Andrea, que mudou há um ano para a cidade goiana para trabalhar como guia e tradutora para turistas dentro da Casa Dom Inácio. "Encaro isso como uma provação não para o João, mas para nós vermos se nossa fé é verdadeira ou não. Meu afeto por ele está mais firme do que antes", defende.
Entre membros de hotéis e pousadas, a avaliação é que o impacto das denúncias deve ser visto com maior clareza na quarta-feira, próxima data marcada para atendimentos do médium na casa.
Uma funcionária de uma pousada próxima ao local, no entanto, relata à Folha que ao menos três pessoas que planejavam chegar na terça-feira já avisaram: podem desistir da reserva. "Disseram que esperam um depoimento dele para decidir o que fazer", afirma ela, que pede para não ser identificada.
Pela manhã, a reportagem contou ao menos 70 pessoas, a maioria estrangeiros, que se reuniam em uma das salas da Casa para fazer orações (intercaladas em alemão, inglês e português) e cantar como "Let it be", "Amazing grace" e "What a wonderful world".
Enquanto esperava na saída, a vendedora de toalhas de mesa Marlene Soares, 40, diz ter estranhado o movimento um pouco menor do que o costume neste domingo. Em geral, diz, a maioria dos brasileiros chega na terça-feira, enquanto estrangeiros costumam estender a estadia por mais de uma semana. "Sempre vendo alguma peça. Mas hoje ainda não vendi nenhuma", relata.
Abordados pela reportagem, parte das pessoas que frequentavam o local diziam não saber das denúncias de abuso ou ter ouvido apenas "rumores". Alguns, assustados, evitaram comentar o caso. "Se for verdade, não quero ter meu nome envolvido nisso", disse uma turista.
Outros saíram em defesa do médium. Voluntário na casa há 19 anos e dono de uma pousada na cidade, Norberto Kirst, 75, afirma que João é um homem comum, mas com uma "missão espiritual".
"O que está sendo falado é sobre o homem João. Jesus já disse: quem puder que atire a primeira pedra. Mas hoje vemos que são jogadas pedras em cima de todo mundo", diz. "A verdade é mesmo como estão falando? Ou é mentira ou recalque? João já respondeu a processos. Se tudo que já foi dito é verdade, ele não teria sido absolvido", completa.
"A verdade é só Deus quem sabe", disse uma canadense de 38 anos à Folha. "Mas a minha experiência foi positiva. Estou rezando para que ocorra o melhor para todos", afirma ela, que pede para não ter seu nome revelado.
Para Guy Ribbens, 57, que veio da Bélgica há uma semana em busca de tentar fortalecer sua "espiritualidade", "o futuro vai mostrar quem está certo". "O que você faz de bom ou mal, é você quem vai pagar por isso", diz.