6 anos depois, parentes de vítimas da boate Kiss aguardam julgamento
Ninguém em Santa Maria esquece o fatídico 27 de janeiro de 2013, quando 242 jovens morreram e outros 680 ficaram feridos
As madrugadas na gaúcha Santa Maria são povoadas por apreensão e medo. As labaredas de fogo, o terror, a tragédia, as centenas de corpos queimados estendidos nas calçadas são cenas vivas na lembrança da população. Ninguém esquece o fatídico 27 de janeiro de 2013, quando 242 jovens morreram no incêndio da boate Kiss – e outros 680 ficaram feridos. São dezenas de histórias que marcaram a tragédia. Uma delas conta sobre o bombeiro que, enquanto carregava o corpo de uma vítima, percebeu que o celular tocava no bolso. Era a 101ª ligação da mãe em busca de notícias. Ele simplesmente não teve coragem de atender para dar a notícia da morte.
Ninguém em Santa Maria esquece o fatídico 27 de janeiro de 2013, quando 242 jovens morreram e outros 680 ficaram feridos
As madrugadas na gaúcha Santa Maria são povoadas por apreensão e medo. As labaredas de fogo, o terror, a tragédia, as centenas de corpos queimados estendidos nas calçadas são cenas vivas na lembrança da população. Ninguém esquece o fatídico 27 de janeiro de 2013, quando 242 jovens morreram no incêndio da boate Kiss – e outros 680 ficaram feridos. São dezenas de histórias que marcaram a tragédia. Uma delas conta sobre o bombeiro que, enquanto carregava o corpo de uma vítima, percebeu que o celular tocava no bolso. Era a 101ª ligação da mãe em busca de notícias. Ele simplesmente não teve coragem de atender para dar a notícia da morte.
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“O incêndio da boate deixou profundas cicatrizes. E se fosse uma das minhas filhas? Preocupa-me o descaso dos empresários e das autoridades em relação à segurança da casa. Tenho uma filha que estuda em Santa Maria e entendo a aflição dos pais. Mortes trágicas, sonhos aniquilados”, afirma a publicitária Ana Paula Saugo, moradora na vizinha Cruz Alta.
“A tragédia estava anunciada. Era só uma questão de tempo”, diz o matemático Paulo Tadeu Nunes de Carvalho, cujo filho, Rafael, de 32 anos, estava entre as vítimas. “Meu filho saiu de São Paulo para visitar alguns amigos que conheceu no intercâmbio na Nova Zelândia.” Diretor da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Carvalho enumera uma série de falhas. Em 2009, o arquiteto Rafael Escobar apresentou, a pedido da prefeitura de Santa Maria, um relatório no qual indicava 29 irregularidades nunca sanadas. Barras de ferro inapropriadas, grades que provocaram a obstrução na rota de fuga, falta de sinalização, além de equipamentos instalados à revelia das especificações de segurança. Mesmo assim, em 2011, o Ministério Público Estadual assinou o Termo de Ajustamento de Conduta que autorizava o funcionamento da boate.
Até aquele ano, antes da assinatura do Termo de Ajustamento, o responsável pelo inquérito da boate no Ministério Público era o promotor João Marcos Adede e Castro, cujo filho, Ricardo Luiz, coincidentemente viria a ser contratado como advogado do proprietário da boate. A partir de então, quem assumiu o processo e firmou o documento que autorizava o funcionamento da casa foi o promotor Ricardo Lozza.
O conflito de interesses provocou uma revolta na cidade. O promotor e o filho, assim como Lozza, processaram por “calúnia e difamação” pais e parentes das vítimas que fizeram a denúncia. O juiz Carlos Alberto Ely Fontela, da 3ª Vara Cível de Santa Maria, rejeitou a alegação dos procuradores por entender que punir os parentes seria ferir o direito à liberdade de expressão.
Desde então, o processo arrasta-se pelos tribunais. A Polícia Civil responsabilizou 35 acusados, entre eles o prefeito da época, Cezar Schirmer, do PMDB, secretários municipais, fiscais da prefeitura e até bombeiros. Apenas quatro foram denunciados pelo Ministério Público: dois sócios da boate, o músico que acendeu o fogo de artifício e o produtor da banda Gurizada Fandangueira. Schirmer seria até premiado: absolvido pela Procuradoria, tornou-se secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul durante o mandato do correligionário Ivo Sartori.
Em 2017, o Tribunal de Justiça estadual determinou que os quatro acusados deveriam ser julgados por um juiz de vara criminal da primeira instância por homicídio culposo (quando não há intenção de matar). A Constituição prevê que um júri popular só pode ser convocado em caso de homicídio doloso, quando se assume o risco pela morte ou quando a intenção de matar é explícita. A decisão foi, no entanto, revertida em 18 de junho último pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. No entendimento dos ministros, os elementos do processo indicam que os responsáveis causaram o chamado “dolo eventual”, ou seja, assumiram o risco de matar. Caberá à Justiça definir os próximos passos do processo e marcar a data do julgamento. A defesa dos réus ainda pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal.
Só quatro acusados vão enfrentar o júri popular, apesar de provada omissão de várias autoridades
O advogado Pedro Barcellos, defensor das vítimas da tragédia, espera que o júri seja marcado em breve. Ele preocupa-se, no entanto, com a tentativa da defesa dos acusados de transferir o julgamento para Porto Alegre. A mudança de comarca, diz, geraria um problema logístico, além de afastar o caso da cidade em que ele ocorreu.
Os parentes das vítimas aguardam ansiosos o julgamento, mas continuam sem entender o motivo de tão poucos terem sido encaminhados ao banco dos réus. O prefeito Schirmer, o comando dos bombeiros e integrantes do Ministério Público conheciam as irregularidades, nada fizeram para interditar a boate ou exigir as reformas necessárias, e ainda assim acabaram eximidos das responsabilidades. Uma petição assinada em 2017 pela advogada Tâmara Biolo Soares e dirigida à Organização dos Estados Americanos solicita a responsabilização das instituições brasileiras pela tragédia. “O munícipio de Santa Maria, o Ministério Público e o Corpo de Bombeiros são três entes públicos, cujas condutas fazem com que o Brasil tenha responsabilidade internacional nesse caso. A lei determinava que a boate obedecesse a uma série de regulamentos, e esses entes públicos tinham conhecimento de que a boate não obedecia e, no entanto, se omitiram. Nada fizeram para que a boate sanasse esses problemas ou que fosse fechada”, afirma a defensora.
A parcela de responsabilidade do MP, acredita Carvalho, é enorme. “Se um local oferece risco à vida, a lei diz claramente que tem de fechar. Se o Ministério Público tivesse observado o relatório de 2009, a tragédia poderia ter sido evitada. O pior é que os culpados estão livres. O MP é omisso e se cala quando precisa dar respostas. Trata-se de um lawfare explícito.” Mais um processo com a cara do Brasil.