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Prosopagnosia: como é viver sem reconhecer a própria mãe

A estudante Evie Prichard conta como é viver com uma desordem que a impede de reconhecer rostos - até os da própria família

Por UOL com BBC Brasil 01/07/2016 21h09
Prosopagnosia: como é viver sem reconhecer a própria mãe
- Foto: BBC Brasil

Quando você encontra uma pessoa conhecida, a maneira mais fácil de reconhecê-la é pelo rosto - mas nem todo mundo consegue fazer isso. Estima-se que uma em cada 50 pessoas tenha prosopagnosia, ou "cegueira para feições", uma condição que pode afetar até 5 milhões de pessoas no Brasil, por exemplo.

O que é prosopagnosia?
Prosopagnosia é uma condição neurológica onde a parte do cérebro que reconhece rostos não se desenvolve como deveria
Pode impedir as pessoas de reconhecer parceiros, familiares, amigos e até a própria imagem
Imaginava-se que fosse causada por lesão cerebral (prosopagnosia desenvolvida), mas agora um elo genético foi identificado (prosopagnosia congênita)
A prosopagnosia desenvolvida é rara, mas uma em cada 50 pessoas pode ter a versão congênita da desordem
Não há tratamento específico, mas existem treinamentos específicos para aprimorar a detecção de rostos
Fonte: NHS Choices: Prosopagnosia

A britânica Evie Prichard, de 24 anos, tem essa desordem e conta como é a vida quando você luta para reconhecer amigos e família:

"Eu tinha 19 anos quando esbarrei com um desconhecido em uma festa e perguntei se ele conhecia um ex-namorado com quem havia rompido meses antes.

Aquela camisa floral e o aroma do perfume CK One deveriam ter sido suficientes para me alertar sobre quem estava ali, mas por alguma razão esses sinais me fizeram pensar que aquele estranho era um amigo do meu ex, que talvez tivesse pegado emprestado sua camisa e seu perfume.

Infelizmente, como em várias outras ocasiões, o instinto de detetive que me acompanha nas interações sociais tinha me deixado na mão - o sujeito era meu ex.

Tudo o que ele tinha feito era cortado o cabelo e raspado a barba rala, mas como eu estava de salto alto nossa diferença de altura também não aparecia. Minha cegueira para feições significa que aposto em sinais como estilo de cabelo e altura para diferenciar as pessoas, e sem essas coisas eu fico totalmente à deriva.

Nesse sentido foi até um triunfo: certamente o ego dele deu uma desinflada. Mas também foi uma das várias ocasiões em que minha cegueira para feições me fez passar por idiota.

Para mim, um rosto é como um sonho. É incrivelmente vívido no momento, mas se esvai segundos depois, até restarem apenas características desconectadas e uma vaga memória de como aquela face me fez sentir na hora.

Viver com um cérebro que não conta com essa função crucial pode ser muito desgastante, mas na maior parte do tempo é algo apenas inconveniente e - muito - constrangedor.

Houve até uma vez em que me vi no espelho em um bar e realmente não me reconheci. Cheguei a ter alguns pensamentos bem críticos sobre minha própria cara suada antes de perceber que o alvo da minha crítica era eu mesma.

Outro dia, minha mãe, que tem cabelos enrolados, fez uma escova e eu passei direto por ela na rua.

Estudos mostraram que até 2% da população pode estar vivendo com prosopagnosia. Muitos nem percebem que possuem essa condição.

A gravidade da desordem vai da relativamente gerenciável até o 'desculpe, pensei que estava beijando meu marido'. A maior parte dos diagnósticos fica entre esses dois polos.

Minha prosopagnosia é severa, mas consigo reconhecer amigos próximos em circunstâncias normais, e tenho uma chance de 50% de manter o reconhecimento após um corte de cabelo ou troca de óculos.

A situação é pior para muitas pessoas. Ouvi histórias de gente que foi roubada por estranhos que se passaram por parentes e de crianças andando com homens desconhecidos.

Por sorte, nada disso aconteceu comigo quando era criança - sei do meu problema por toda a vida, então sempre fui cautelosa.

Para mim era quase impossível reconhecer meus colegas na escola, o que fazia do ato de fazer e manter amigos uma luta. Ainda lembro de vagar chorando pelos corredores no primeiro dia do ginásio: tinha ido ao banheiro e não sabia para qual sala voltar porque não reconhecia a professora nem os alunos.

As pessoas costumam ficar perplexas quando conto sobre minha prosopagnosia. Na verdade já vi todo tipo de reação, de descrença à fascinação e riso histérico. Um homem até me acusou - pelas minhas costas - de inventar a história para paquerá-lo.

Até recentemente pensava-se que a prosopagnosia era uma condição muito rara que resultava de dano cerebral, mas ela é mais comum como desordem genética. E está na minha família - afetou minha mãe, minha avó e minha bisavó, embora minha irmã Rosa tenha aparentemente escapado da maldição.

Foi apenas neste século que pesquisadores começaram a perceber exatamente quantas pessoas estavam vivendo em silêncio com essa condição. Pessoas que, como eu, tiveram prosopagnosia por todas suas vidas, e acabaram aprendendo a esconder muito bem suas deficiências.

Como uma pessoa cega que reconhece parentes pelos passos, portadores de prosopagnosia são forçados a desenvolver maneiras incomuns de descobrir com quem estão conversando. De sinais óbvios como cabelo e voz até postura, jeito de andar e sobrancelhas, confiamos em dezenas de táticas para enfrentar o cotidiano.

E se tudo isso falhar, somos ótimos blefadores. Quando encontro alguém que possa conhecer, eu geralmente projeto o nível de amizade que seria aceitável para amigos de infância ou estranhos completos. É uma linha bem tênue.

Mas ainda tenho uma vocação especial para me fazer de idiota. Uma vez estava sendo filmada para um documentário e duas meninas que conhecia bem do colégio ficaram por quase 20 minutos ao lado de minha mesa em um bar quase vazio sem que eu tivesse a menor ideia de quem eram.

Uma delas me vendeu uma cerveja, e embora eu tenha a olhado nos olhos e sorrido enquanto pegava o troco, eu ainda não consegui reconhecê-la.

No mês passado, no festival de música de Glastonbury, eu estava acampando com amigos e um monte de amigos deles, a maioria desconhecida para mim. Durante o festival, pessoas se juntaram a nós e eu não tinha a menor ideia se eram as mesmas pessoas com quem havia passado os dias anteriores bebendo e conversando.

Pior foi quando eu e minha irmã entramos na área VIP numa tarde - aparentemente havia todo tipo de celebridade por ali, mas eu não fazia ideia quem eram.

Embora eu possa - e faço isso - brincar com minha condição, é sempre cansativo ficar batalhando para descobrir a identidade de alguém a cada encontro. Como universitária em uma cidade pequena, eu deveria reconhecer dezenas de pessoas por dia, mas acabo ofendendo muitas delas também.

Sou uma pessoa sociável por natureza. Mas depois de alguns dos meus melhores amigos reconhecerem que me achavam fria no começo porque eu os ignorava sempre, ficou mais e mais difícil para mim querer conhecer pessoas novas.

No final, o jornalismo estudantil me salvou. Falar sobre prosopagnosia em uma coluna me permitiu ser 'aquela menina com cegueira para feições'. Embora não seja o nicho dos sonhos de muitas pessoas, foi a maneira mais eficiente de explicar às pessoas que eventualmente magoava a razão de tratá-las como estranhos.

Ironicamente, à medida que passei a ser um rosto reconhecido no campus, ficou mais aceitável para mim falhar em reconhecer os outros.

Rostos são parte importante da identidade. Não ser reconhecido pode ser terrível - é como ser ignorado e alguém dizer que você não importa.

Mas nada se compara à dor de saber que está magoando as pessoas constantemente, fazendo com que se sintam subestimadas e ignoradas, mesmo não tendo ideia de que está fazendo isso naquele momento.

Alienar-se de um mundo de rostos é estranho, mas me conforto ao pensar que artigos como esse podem contribuir para que as pessoas perdoem a mim e a outros como eu.