O que aconteceu com os fuscas comprados por Maluf com dinheiro público para presentear os jogadores da Copa de 70
"Os automóveis traziam sobre o porta-malas uma dúzia de rosas vermelhas cada um. No para-brisa traseiro, além do emblema da concessionária, havia um plástico com os dizeres: 'Brasil, ame-o ou deixe-o'".
Foi assim que o jornal Folha de S.Paulo descreveu, em 21 de julho de 1970, o presente que Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo e hoje deputado federal, deu aos jogadores e à comissão técnica de futebol que, dias antes, haviam vencido a Copa de Mundo pela terceira vez.
Eram 25 Fuscas verdes-musgo, zero quilômetro, comprados com dinheiro público da prefeitura de São Paulo. Os automóveis se tornaram um processo judicial de 36 anos - foi a primeira e, por muito tempo, única condenação do tradicional político paulistano. A Justiça considerou que ele lesou os cofres públicos sem beneficiar a cidade - depois de vários recursos, ele foi inocentado.
Em dezembro, Maluf foi preso depois que Edson Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que ele comece a cumprir a pena de 7 anos e 9 meses por lavagem de dinheiro em uma obra durante sua segunda passagem pela prefeitura da capital paulista, na década de 1990. Atualmente, ocupa uma cela na Penitenciária da Papuda, em Brasília.
Na entrega dos Fuscas, no Parque Ibirapuera, jogadores comemoraram o presente: "É o primeiro carro da minha vida", disse Jairzinho, o "Furacão da Copa". O lateral-esquerdo Everaldo afirmou que já tinha um automóvel e que daria o novo para a esposa. A mesma coisa prometeu Zagallo, o técnico, que possuía um Opala.
Na cerimônia de entrega, quase todos disseram que "presente não se vende", segundo a reportagem da Folha relatou. A exceção foi o atacante Paulo Cézar Caju, que não "tinha problemas com isso": disse que venderia o automóvel para comprar um apartamento. Vendeu mesmo? Por telefone, Caju disse à BBC Brasil que não gostaria de voltar ao assunto.
Vários jogadores acabaram se desfazendo do Fusca de Maluf logo depois de receberem o agrado - e o paradeiro dos automóveis se perdeu quase cinco décadas depois. Piazza, por exemplo, vendeu o fusquinha para investir em um posto de gasolina.
O zagueiro reserva Baldochi conta que achava o Fusca pequeno - ele tem 1,89 metro de altura. "Vendi logo depois. Eu queria um carro maior", disse. Hoje com 71 anos, ele vive em Batatais, interior de São Paulo, onde administra uma loja de móveis com a família.
O meio-campo Clodoaldo conta que o Fusca não lhe despertou tanta atenção: "Nem cheguei a usar. Vendi logo em seguida", afirmou à BBC Brasil. Ele fez um pedido à reportagem: "Se você encontrá-lo, me liga? Acho que hoje deve estar no ferro-velho".
De onde Maluf tirou o dinheiro para os Fuscas?
Paulo Maluf virou prefeito de São Paulo pela primeira vez em abril de 1969, indicado pelo marechal Artur da Costa e Silva, mandatário da ditadura militar que regia o país.
Em 3 de julho de 1970, dias depois da final da Copa - o Brasil venceu a Itália por 4 a 1 -, dez dos 17 vereadores de São Paulo aprovaram uma lei pedida pelo prefeito que determinava a liberação de CR$ 315.000,00 para a compra dos carros.
Os jogadores sempre disseram que não sabiam de onde tinha vindo o dinheiro.
"Recebemos como um presente, como uma homenagem, na euforia de um título tão importante. Eu tinha 23 anos", lembra Tostão, atacante e um dos principais jogadores do time, hoje comentarista e escritor. Tostão usou o veículo por vários anos e depois o vendeu, conta. "Só depois soubemos que o dinheiro era da prefeitura e que havia um processo", conta à BBC Brasil, por telefone.
Em seu livro Tempos vividos, sonhados e perdidos: Um olhar sobre o futebol, ele escreveu que só depois de amadurecer refletiu sobre o presente dado por Maluf. "Com o tempo, amadureci, entendi e aprendi que dinheiro público não pode ser distribuído para quem quer que seja".
O processo dos Fuscas foi movido pelo advogado Virgílio Egydio Lopes Enei. Ele acusava Maluf de ter lesado o erário, pois a cidade de São Paulo não teve nenhum benefício com os Fuscas, pelo contrário.
Em 1974, o político foi condenado a devolver o dinheiro dos carros aos cofres municipais. Mas, como em outros processos em que foi acusado e até condenado, Maluf se beneficiou de recursos e embargos infringentes que prolongaram os casos por décadas - no caso dos Fuscas, foram 36 anos.
Lopes Enei era um advogado que costumava incomodar a ditadura militar: entrou com mais de 300 pedidos de habeas corpus para libertar presos políticos, conforme seu depoimento ao Memorial da Resistência de São Paulo.
Seu filho, José Virgílio, conta que o pai processou Maluf como uma forma de protesto contra a ditadura. "Eu nem era nascido no início do processo, mas demorou tanto que, décadas depois, me formei advogado, e ainda trabalhei no caso, no início dos anos 2000", diz ele.
Depois de idas e vindas, Maluf saiu-se finalmente vencedor em março de 2006, quando o STF considerou que a lei que autorizou o então prefeito a doar os veículos era constitucional. Por isso, o político não precisava devolver o dinheiro.
Procurada, a assessoria de Paulo Maluf não comentou o caso.
Abre alas que o fusquinha vai passar
Um dos Fuscas de Maluf foi usado de forma inusitada e ajudou a salvar o desfile da União da Ilha do Governador, escola de samba vice-campeã do Carnaval carioca em 1977.
Naquele ano, o zagueiro Brito - titular da seleção de 70 - ainda tinha o veículo. Em depoimento à Globo, ele contou que a escola havia desistido de empurrar o carro abre-alas depois de alguns defeitos.
Vizinho do barracão da escola, Brito decidiu acudir a escola de coração. "Quando eu vi o abre-alas no barracão, eu falei: 'Não, isso não vai ficar aqui não. Vai pra avenida!'".
O fusquinha de Maluf caiu como uma luva: Brito amarrou o veículo no abre-alas e puxou o carro alegórico até a concentração do desfile - na época, na avenida Presidente Vargas.
Brito usou o carro por 11 anos e depois o vendeu.
'Muita estima' pelo Fusca
Um dos 25 Fuscas sobreviveu ao tempo - ao menos em partes.
O exemplar dado ao lateral-direito Zé Maria saiu do Ibirapuera dirigido pelo pai do então jogador. "Na época, eu nem sabia dirigir direito", lembra ele.
Dois meses depois, o irmão do lateral capotou o veículo na rodovia Anhanguera, próximo da cidade de Jundiaí. "O fusquinha ficou quase destruído, mas consegui retirar algumas peças e coloquei em outro Fusca, de 1966", lembra Zé Maria.
O transplante deu certo e o que restou do Fusca de Maluf vive na garagem de Zé Maria, no litoral paulista. "Ainda dirijo, tenho muita estima por ele. Foi um presente", diz o ex-jogador, por telefone.
Ele só reclama de uma coisa do presente de Maluf: "Ele era verde, né? E eu sou corintiano".