A impressionante fuga de casal de idosos sob 'som assustador' de enxurrada de lama
Por poucos minutos, Vera e Geraldo conseguiram escapar a pé da avalanche de lama que arrasou a cidade, deixou 65 mortos e 292 desaparecidos.
"A barragem rompeu! Vim tirar o senhor daqui", gritou um rapaz pela janela.
Era por volta de 12h30. Vera Souza Araújo Vilaça, de 64 anos, tinha acabado de chegar à casa de Geraldo, um senhor de 90 anos, que caminha com a ajuda de um andador. Havia quase dois anos que ela subia, todos os dias, os cerca de 500 metros que separavam sua chácara da de Geraldo, para lhe trazer o almoço, um agrado de vizinhança.
Estava um dia bonito, tranquilo, como a maioria dos dias no Parque da Cachoeira, bairro da zona rural de Brumadinho (MG). A paisagem ao fundo era de um vale muito verde, por onde corria um pequeno riacho. O barulho era o da roça: pássaros, galinhas, vacas, minas de água, o vento que atravessava o vale.
Até que surgiu o rapaz, arrendatário da terra de Geraldo, trazendo o alerta da tragédia. Ele rapidamente carregou o nonagenário para fora dali.
Um ano antes, Geraldo, morador antigo e experiente da região, havia feito uma previsão para Vera, durante as prosas que costumavam seguir a entrega do almoço: "Se um dia a barragem romper, tudo isso aqui vai embora, não vai sobrar nada".
Vera e o marido, também chamado Geraldo, nunca tinham visto a barragem da Vale, localizada há cerca de sete quilômetros dali. Mas o ancião lhes tinha garantido: era muito grande e, se rompesse, iria percorrer todo o vale, destruir todas as casas e matar quem estivesse pela frente.
Após o grito de alerta do rapaz que veio salvar Geraldo, Vera se virou para avistar sua casa ao longe. Estava localizada na mesma colina, mas bem abaixo - portanto, uma área mais propensa à passagem da avalanche e mais insegura. Lá, o marido a aguardava para almoçar e seu irmão tirava um cochilo.
Para chegar até eles e avisar do rompimento da barragem, Vera precisaria fazer o caminho contrário de uma rota fuga: em vez de ir para um local alto, descer por um caminho que certamente seria atingido.
Nem por um instante ela hesitou: desceu correndo para salvar a família, enfrentando o risco de ser tragada pela lama no meio do trajeto.
"Passei debaixo de uma cerca de arame farpado, corri por uma pinguela de quatro metros (uma ponte de tábua que atravessa um corpo d'água, com um corrimão de bambu, por onde a população costumava passar devagar e com cuidado para não cair), e corri até chegar em casa. Eu não sei de onde veio essa minha força. Meus nervos da perna estão todos doloridos até agora", conta Vera, que se aposentou por invalidez devido a uma trombose e, nos últimos anos, quebrou a perna três vezes.
CIDADES
Tragédia em Brumadinho: a impressionante fuga de casal de idosos sob 'som assustador' de enxurrada de lama
Por poucos minutos, Vera e Geraldo conseguiram escapar a pé da avalanche de lama que arrasou a cidade, deixou 65 mortos e 292 desaparecidos.
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Após o grito de alerta do rapaz que veio salvar Geraldo, Vera se virou para avistar sua casa ao longe. Estava localizada na mesma colina, mas bem abaixo - portanto, uma área mais propensa à passagem da avalanche e mais insegura. Lá, o marido a aguardava para almoçar e seu irmão tirava um cochilo.
Para chegar até eles e avisar do rompimento da barragem, Vera precisaria fazer o caminho contrário de uma rota fuga: em vez de ir para um local alto, descer por um caminho que certamente seria atingido.
Nem por um instante ela hesitou: desceu correndo para salvar a família, enfrentando o risco de ser tragada pela lama no meio do trajeto.
"Passei debaixo de uma cerca de arame farpado, corri por uma pinguela de quatro metros (uma ponte de tábua que atravessa um corpo d'água, com um corrimão de bambu, por onde a população costumava passar devagar e com cuidado para não cair), e corri até chegar em casa. Eu não sei de onde veio essa minha força. Meus nervos da perna estão todos doloridos até agora", conta Vera, que se aposentou por invalidez devido a uma trombose e, nos últimos anos, quebrou a perna três vezes.
A fuga
Vera chegou antes da avalanche. Primeiro, acordou aos berros o irmão, Manuel Souza Araújo, de 57 anos, que dormia no rancho. Depois, entrou correndo em casa.
"A barragem rompeu!", gritou para o marido, Geraldo do Carmo Vilaça, de 70 anos. "Ele estava sentado na mesa do almoço me esperando, quieto. Se eu não tivesse ido para lá (avisá-lo), a lama tinha pegado ele", diz.
Depois do aviso de Vera, "foi o tempo de levantar e fugir. Nós tivemos 3 minutos. Não tinha mais tempo, a avalanche já estava há 100, 50 metros da casa da gente", conta Geraldo. Naquela altura, a lama já havia levado o refeitório e a área administrativa da Vale, e eliminado a Pousada Nova Estância. Agora, se aproximava do bairro Parque da Cachoeira.
Geraldo abriu o portão da garagem e destrancou o carro. Enquanto isso, Vera foi antecipando a fuga, correndo por uma rua íngreme, visando alcançar o topo. Mas a chave do carro se perdeu entre o estofado. "Não dava tempo de procurar. Só restava correr", lembra Geraldo.
Ele olhou para cima e viu que a mulher ia conseguir se salvar. Mas, no sentido contrário, começou a ouvir o barulho aterrorizador da enxurrada chegando.
"É um som assustador, da lama derrubando árvore grande, quebrando telha, levando casa, carro", conta Geraldo. "É um som de filme de terror", diz a esposa.
Então, Geraldo percebeu que não dava mais tempo de fugir pelo mesmo caminho da mulher - a lama chegaria antes dele alcançar o topo da rua. Em segundos, tomou uma decisão: correr para dentro de uma mata fechada atrás de sua casa, que também terminava em um ponto alto e seguro.
"Corri uma subida de uns 120 metros, sem parar. Eu parecia até um menino de 17 anos. Mas eu tenho 70. Acho que é o instinto de sobrevivência. Quando cansei, parei em uma árvore para descansar. E fiquei ouvindo a enxurrada. Se ela estivesse chegando, eu precisaria vencer o cansaço e correr mais alto".
Tanto Vera quanto Geraldo ficaram a salvo, cada um em um ponto alto diferente. De onde estavam, viram a enxurrada da barragem levar tudo o que construíram ao longo de toda a vida.
A lama engoliu a casa, o carro, o pomar, a horta, as 50 galinhas, os cachorros, os documentos, os álbuns de fotos do tempo de juventude e dos filhos crianças. Em segundos, não restava mais nada. Hoje, tudo está abaixo de 10 metros de lama. O vale não existe mais. O terreno foi nivelado pelos rejeitos de minério de ferro da Vale.
Embora preocupados um com outro, Vera e Geraldo tinham a sensação de que os dois tinham conseguido se salvar. Depois que a lama atravessou o Parque da Cachoeira, ele caminhou até o topo da ladeira onde estava a esposa. Ver o marido vivo foi uma enorme comoção. "Nascemos de novo. Nós dois nascemos de novo", diz Vera.
Além do casal, os demais vizinhos também se encontraram ali, para verificar se estava faltando alguém. Naquela parte do bairro, são cerca de 15 casas. Assim como Vera, todos os moradores fugiram alertados por vizinhos, familiares, amigos. Não houve nenhuma sirene, nenhum comunicado, ninguém especializado para ajudar. Todos perderam tudo. O vale virou lama.
Uma pessoa estava faltando: o irmão de Vera, Manuel. A expectativa do casal era que ele tivesse fugido por algum outro caminho, assim como Geraldo, e acabasse aparecendo. Mas isso não aconteceu. Seu nome está na lista de desaparecidos - que, nesta segunda-feira, tem 279 pessoas.
Três dias após a tragédia, Vera está perdendo as esperanças de encontrar o irmão vivo. "Se a sirene tivesse tocado, a gente teria muito mais minutos para fugir. A gente podia ter ajudado o Manuel, forçado ele a sair. Mas só deu tempo de correr. Se ficássemos mais alguns segundos, teríamos morrido os três", diz Geraldo.
"O que mais eu vou sentir falta da minha vida antiga é o Manuel. Os bens materiais não importam. Eu só queria ter podido salvar o meu irmão, assim como eu consegui salvar meu marido. Aí, eu estaria completa, mesmo sem ter mais nada", diz Vera, muito emocionada.